Artigo: Decisão contra julgamento em curso por Cortes de Contas exorbita competência do Judiciário

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*Miguel Dias Pinheiro, advogado

Dentro da Constituição Federal, na órbita das Cortes de Contas, quer da União como dos Estados e dos Municípios, o exame de mérito do ato administrativo somente se esgota quando concluído o julgamento de sua validade ou não. De sua convalidação ou não.

Enquanto pendente de julgamento final o mérito do ato administrativo perante a Corte de Contas, falece competência ao Judiciário declará-lo válido ou inválido, nulo ou anulável, convalidado ou não. Ainda discutido na seara administrativa da Corte de Contas, falece competência ao Poder Judiciário declará-lo existente ou inexistente, confirmado ou não.

Por analogia, o egrégio Tribunal de Justiça do Estado de Pernambuco, no Agravo 2781968, de modo muito exemplar, decidiu que as decisões tomadas pelos Tribunais de Contas, aliada à aplicação genérica do princípio da inafastabilidade da jurisdição consagrada na Constituição Federal, em seu artigo 5°, inciso XXXV, pode nos levar à errônea interpretação de que a matéria cognitiva nessas lides é irrestrita, ou seja, o controle do Judiciário em sede de apreciação das referidas decisões seria – como será – amplo.

Assevera mais o tribunal citado que, o próprio legislador constituinte, ao delinear como atribuição dos Tribunais de Contas determinadas atividades de controle, limita o controle do Judiciário, que não poderá adentrar ao mérito em face de atos que tenha por infringentes aspectos de controle administrativo de legalidade.

Assim, de acordo com a Corte de Pernambuco, ao Poder Judiciário incumbe apenas o dever de examinar, de forma exauriente, as decisões proferidas pelas Cortes de Contas sob o aspecto formal. De sorte que, a cognição judicial em tais casos sofre mitigações no plano horizontal, ou seja, em sua extensão, no que diz respeito à amplitude das questões que podem ser objeto de análise. A cognição assim seria parcial ou limitada, não podendo exorbitar da sua competência na medida em que penetra no núcleo do mérito administrativo.

O ato administrativo submetido à apreciação de uma Corte de Contas somente produzirá efeitos legais após sua convalidação. Claro! Se regular ou não! Enquanto pendente de validade pela Corte de Contas, o ato administrativo se assemelha à lei em tese, que ainda não produziu seus efeitos legais para ser objeto de apreciação e contrariedade pelo Poder Judiciário. Por analogia, a máxima de que é vedado ao Judiciário apreciar lei em tese se aplica ao caso em comento.

Portanto, ato administrativo que ainda não produziu efeitos no mundo jurídico é ato inexistente. O Judiciário não decide sobre o abstrato, mas sobre o concreto. Depois de concretizado o ato administrativo pela sua validade jurídica é que surge a competência do Judiciário para apreciá-lo em seu mérito, se arbitrário, ilegal, nulo ou não.

Para Celso Antônio Bandeira de Mello, “mérito é o campo de liberdade suposto na lei que, efetivamente, venha a remanescer no caso concreto, para que o administrador, segundo critérios de conveniência e oportunidade, se decida entre duas ou mais soluções admissível perante ele, tendo em vista o exato atendimento da finalidade legal, dada a impossibilidade de ser objetivamente reconhecida qual delas seria a única adequada” (Curso de Direito Administrativo,. 18ª. ed., São Paulo, Malheiros, 2005, pg. 38).

A propósito, leciona o insigne professor Helly Lopes Meireles: “O mérito do ato administrativo consubstancia-se, portanto, na valoração dos motivos e na escolha do objeto do ato, feitas pela Administração incumbida de sua prática, quando autorizada a decidir sobre a conveniência, oportunidade e justiça do ato a realizar. Daí a exata afirmativa de Seabra Fagundes de que ‘o merecimento é aspecto pertinente apenas aos atos administrativos praticados no exercício de competência discricionária” (Direito Administrativo Brasileiro, São Paulo. Malheiros, 2003).

É bem verdade que uma vez formulada pretensão judicial que envolva eventual arbítrio travestido de ato administrativo, possa o Judiciário proceder à análise do ato impugnado de maneira a verificar se o agente, ao praticá-lo, excedeu os limites a ele conferidos pela Constituição Federal, como, por exemplo, verificar se a Administração ultrapassou os limites legais.

Porém, no imbróglio pertinente ao TCE-PI e à decisão do TJ-PI, pergunta-se: “Onde estaria o ato administrativo formalizado e convalidado?” Pode até ter sido formalizado, mas não convalidado para surtir efeitos legais. Se há um julgamento em andamento pela Corte de Contas, que aprecia o mérito de validade ou não, não há, portanto, convalidação daquilo que existe apenas em tese administrativa, ato resultante da vontade do administrador público em atenção aos princípios constitucionais de legalidade, de impessoalidade, de moralidade e de eficiência.

Aconselha Meirelles que, “o juiz não pode (e nem deve) substituir o administrador. Mas, também não pode (e nem deve) deixar de analisar o ato praticado sob o fundamento que este se encontra protegido pelo manto da conveniência e da oportunidade”. Mas, onde está o ato concreto que ainda merece pronunciamento do TCE-PI?

A Constituição Federal estabeleceu no seu art. 5º, inciso XXXV, que nenhuma ameaça ou lesão a direito deixará de ser apreciada pelo Poder Judiciário. Assim, toda e qualquer lesão sofrida pelo jurisdicionado, uma vez submetida ao Pode Judiciário, deverá ser analisada.

Corretíssimo! Mas, onde está o ato convalidado que se encontra ainda pendente de julgamento pela Corte Administrativa para que possa ser objeto de apreciação judicial?

Os atos administrativos possuem cinco elementos: competência, finalidade, forma, motivo e objeto. Esses elementos, pelo que sabem os intercessores do Direito no caso do TCE-PI, ainda estão pendentes de julgamento pela Corte de Contas.

Como diz Renato Beiriz Brandão de Azevedo, professor e consultor de Direito Administrativo, “os três primeiros elementos serão sempre vinculados, independentemente da natureza do ato; já os dois últimos (motivo e objeto) estes, sim, formam o núcleo do mérito administrativo, permitindo que o administrador opte por um dos caminhos que mais atenda o interesse coletivo”.

Se todos esses elementos intrínsecos à validade do ato estão sob julgamento de mérito pelo Tribunal de Contas do Piauí, não há que se falar em ato jurídico perfeito e acabado para produzir efeitos e para que o Judiciário o aprecie, concretamente, sob a ótica do art. 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal.

A Administração pública, no exercício da sua autotutela, pode não só anular seus atos, mais também revogá-los por motivo de conveniência e oportunidade. Isso pode ser extraído principalmente dos verbetes das Súmulas 346 e 473 do Supremo Tribunal Federal, “in verbis”:

Súmula 346: “A administração pública pode declarar a nulidade dos seus próprios atos”.

Súmula 473: “A administração pode anular seus próprios atos, quando eivados de vícios que os tornem ilegais, porque deles não se originam direitos; ou revoga-los, por motivo de conveniência e oportunidade, respeitados os direitos adquiridos e ressalvada, em todos os casos, a apreciação judicial”.

Ademais, nenhuma decisão “inaudita altera pars” poderá esgotar por completo a prestação jurisdicional. Isso é uma regra elementar de Direito. Porque a cautela tem seus limites no tempo e no espaço.

A medida cautelar, como todos sabem, tem por finalidade assegurar – na medida do possível – a eficácia prática de uma providência cognitiva ou executiva. Busca, portanto, assegurar a utilidade de um processo de conhecimento ou de execução. Há, no entanto, uma exceção à regra: que seria a chamada “cautelar satisfativa”, considerada uma anomalia do nosso ordenamento jurídico.

*Reproduzido do Portal AZ.