Simplício e os Tribunais de Contas
Valdecir Pascoal*
Passadas pouco mais de duas décadas da redemocratização, pode-se dizer que existe alguma instituição pública brasileira imune a aperfeiçoamentos?
Não. Todas devem ser aprimoradas para servir melhor ao cidadão. Os antigos já diziam que o estado de devir é permanente e só o que não muda é a mudança. No entanto, há que se reconhecer que há desconhecimento e miopias ensaiadas sobre o papel e a realidade dos Tribunais de Contas brasileiros. Não é raro sofrerem pedradas do mesmo quilate daquelas desferidas contra a famosa Geni.
No seu clássico “A Luneta Mágica”, Joaquim Manuel de Macedo nos presenteou com Simplício, um sujeito que, para compreender a essência da natureza humana, precisou valer-se do uso sucessivo de três lentes-luneta. A primeira permitia-lhe enxergar exclusivamente os defeitos das pessoas e a segunda, apenas as qualidades. Trazendo Simplício para o nosso tema, como ele veria os Tribunais de Contas sob a ótica das mágicas lunetas?
Com o olhar da primeira, enxerga, de pronto, as assimetrias existentes na atuação dos 34 Tribunais de Contas do Brasil. Não consegue ver um sistema de controle externo nacional totalmente integrado e com regras processuais uniformes. Observa que alguns Tribunais, passados 26 anos da Constituição, ainda não adotaram plenamente o modelo de composição nela previsto, especialmente os assentos para os Auditores (membros-substitutos) e Procuradores do Ministério Público de Contas. Com surpresa, constata que os critérios constitucionais para escolha de seus membros, como notórios conhecimentos e idoneidade moral, são, por vezes, ignorados na hora das indicações. Queda-se numa penumbra cinzenta, quando anota que alguns de seus membros respondem a processos criminais.
Lunetas trocadas, eis que se descortina outra realidade. Nela, Simplício depara-se com Tribunais que possuem um quadro de servidores de excelência e que utilizam técnicas de auditoria de padrão internacional. Tribunais atuando de forma estratégica com os demais órgãos de controle, tecendo uma consistente teia republicana inibidora da corrupção. Constata que as ações preventivas e cautelares dos Tribunais geram economia de bilhões para o erário. Vendo o resultado dos julgamentos das contas dos gestores e sabendo que a rejeição delas é a causa mais efetiva de inelegibilidade prevista na lei da ficha limpa, conclui que os Tribunais são essenciais também para melhorar a qualidade da democracia e da governança pública.
Ao observar as auditorias operacionais em áreas sociais como saúde e educação, viu o quanto os Tribunais podem influir para melhorar a efetividade dos serviços públicos. Simplício vê ainda Tribunais, cuja composição respeita fielmente o modelo constitucional e que seus membros – independentemente da origem – procuram atuar com autonomia, ética e proficiência. Não foi raro encontrar Tribunais que atuam sob a égide de um plano estratégico e que primam para serem exemplos de probidade e transparência. Constata o papel educador das escolas de contas vinculadas a essas Instituições e o estímulo ao controle social, por meio de ouvidorias, portais de transparência, redes sociais e de parcerias com a sociedade civil e os meios de comunicação.
Simplício põe a terceira e última luneta, cuja lente é sinônimo de bom senso, e verifica que, de fato, os Tribunais apresentam desafios históricos que precisam ser enfrentados com equilíbrio, autocrítica e coragem. Contudo, restou claro que esses órgãos ainda são pouco compreendidos e que, quando a crítica ultrapassa o razoável, na trilha da desconstrução institucional, elas podem estar a serviço de estratagemas de setores que não querem ser fiscalizados e que reagem justamente em razão dos avanços do controle. Conclui que os Tribunais herdam uma crise de imagem que é reflexo da própria crise do Estado. Por conseguinte, enxerga um evidente paradoxo quando ouve de muitos agentes a assertiva de que os Tribunais agem com rigor extremado, enquanto outros segmentos, em linha oposta, afirmam que as responsabilizações poderiam ser mais contundentes. Ainda com as lentes da sensatez, testemunha uma discussão inédita e fundamental entre os próprios membros e servidores sobre a necessidade da criação de um Conselho Nacional para os Tribunais de Contas e sobre possíveis aprimoramentos constitucionais na forma de escolha de ministros e conselheiros que os compõem.
Com a certeza de um realista esperançoso, conclui que a maioria de seus membros, servidores e entidades representativas trabalham com seriedade para que essas instituições sejam melhor compreendidas, cumpram a sua missão constitucional de guardiães da República e da democracia e conquistem definitivamente a confiança do cidadão brasileiro.
Artigo publicado no jornal Correio Braziliense, do dia 27/10/14 – Faça AQUI o download do artigo em seu formato original!
*Valdecir Pascoal é Presidente da Associação dos Membros dos Tribunais de Contas do Brasil (Atricon) e do Tribunal de Contas do Estado de Pernambuco (TCE-PE) – atricon@atricon.org.br